Carlos Moreira
O “espírito” do hebreu é um “espírito” errante, desalojado, sem solidez, desarraigado, livre. Ele não permite que se cavem estacas profundas ou que se construam armações de concreto. O hebreu é viajante, é caminhante da terra, é ser sem destino, homem de tendas, construtor de altares. Tal como a brisa que passa, ou a pegada que se apaga na areia enquanto se caminha, assim é o hebreu, um caminhante da existência.
Eu não sou filho de Abraão, não pertenço a nenhuma das 12 Tribos, não possuo o “DNA” dos israelitas, não estou incluído nas Promessas, contudo, fui enxertado na “Videira” e convidado ao “banquete”, pois me tornei filho e herdeiro de todas as coisas mediante a fé em Jesus de Nazaré. Desta forma, passei a fazer parte da Família, recebi do mesmo Espírito, bebi do mesmo “cálice”, fui crucificado na mesma cruz e batizado na mesma morte, ressuscitei mediante o mesmo Poder e, tendo nascido de novo, recebi o desafio de andar como caído redimido.
Quando eu achava que tudo já havia se acomodado dentro em mim, que as “pedras” do caminho, todas elas, já haviam sido recolhidas ao abrigo, chegou à hora de levantar novamente a minha tenda e me lançar ao sabor do vento. Depois de tantos anos, pensei que havia encontrado um porto seguro. Mas aquele que veio morar dentro de mim me chamou a novas paragens e a novos desafios.
Foram 14 anos desde a última “mudança”. Tempo de crescimento, tempo de dores. Aliás, sem dores não se cresce, não se amadurece, não se expande nem a mente nem o coração. Foi um tempo de conhecimento, de preparação, talvez, para algo maior. Sou grato por estes anos, por tudo o que eles produziram em mim, cicatrizes de amor, marcas de esperança, tatuagens de sonhos acalentados.
Decepções? Tive muitas... A maior de todas, comigo mesmo. Conheço-me melhor agora, bem mais do que me conhecia antes, sei do que sou capaz, percebo minhas inconcretudes, ansiedades e contradições. O tempo me fez mais fraco, mais manso, mais quebrantado. Um dia destes pensava ser de aço. Hoje, sei que sou apenas de osso. Do pó vim e ao pó voltarei.
Meu amigo André Pessoa me ensinou que crente é feito gato, apega-se a lugares, não a pessoas. De fato, sempre que parti e deixei algo para trás, jamais consegui manter o que dantes havia construído. As amizades se esvaem, os projetos se desfazem, os sonhos se esfarelam como estátuas feitas com areia do mar. Tudo passa, se perde, se esquece, se apaga...
Fiz um balanço dos últimos anos... Para minha tranqüilidade, errei muito mais do que acertei, perdi muito mais do que ganhei, encontrei-me em contradição muito mais do que calcado em certezas. É bem provável que tenha produzido mais lágrimas do que sorrisos, ferido amigos, frustrado ouvintes, decepcionado até os que jamais me conheceram. Servi menos do que deveria, ouvi menos do que poderia, amei menos do que pretendia. Não raro meu discurso produziu apenas eco, pois as palavras não se materializaram no chão da vida. Ergui castelos e vi-os cair diante de meus olhos.
Mas não é a vida assim?! O que esperava eu? A perfeição? O aplauso? O elogio? O reconhecimento? A unanimidade? Ora, quem sou eu a não ser homem feito de barro, suor e sangue. Quem sou eu a não ser alguém que caminha para dentro em busca de si mesmo. Quem sou eu a não ser um miserável resgatado pela graça, um perdido encontrado pela misericórdia, um desviado perseguido pelo amor, um errante salvo pela fé?
Sou tudo e não sou nada, sou ser por fazer-se, o agora e o ainda não, parte de mim é divina, outra parte é humana, pois, mesmo tendo sido resgatado, ainda existo como condenado, estou preso ao meu próprio corpo, aos seus desejos e paixões, apenas sou livre em minha consciência. No fundo, sou andarilho em busca da eternidade, existente caído almejando encontrar a perfeição, humanidade partida, dividida, viajante em busca de reencontrar a árvore da vida.
Mas agora virá um novo tempo... Parte de mim vai, outra parte fica. São tantas as partes nas quais me decompus que não tenho mais como juntá-las novamente. Hoje sou metade, estou ao meio, sou fragmento de mim mesmo, fui dissolvido como o sal, dissipei-me, misturei-me ao todo, tornei-me parte da vida, cidadão do mundo, luz que brilha nas trevas, clarão que rasga a escuridão para atormentar o tormento.
Agora deixe-me partir... Chegou a minha hora. Não me diga adeus, não soe clarins, não me mande recados, não me escreva, nem telefone... Não deixe que a banda toque canções de despedida, não solte fogos, não bata palmas, não acene, nem diga adeus... Deixe-me ir incólume, despercebido, deixe-me ir da mesma forma como cheguei, sem ser notado, percebido, destacado.
É assim que sou e, provavelmente, é assim que serei. As mudanças, creia-me, produzem-se lentamente, levam toda uma vida. Há tanto em mim que precisa mudar que seriam necessárias dezenas de vidas para que fosse eu alguém melhor do que sou. Mas, como só tenho esta vida para viver, aquilo que sou está se projetando para o dia em que as minhas incertezas e medos serão confrontados com o “Totalmente Outro”. Aí, então, verei não mais por espelhos, com os olhos embaçados, mas conhecerei como sou conhecido, pois o verei face a face, Ele será o meu Deus, eu serei o Seu filho.
Desculpe por tudo e por nada. Aceite-me como sou, errante, as vezes perto, as vezes distante, semeador de sonhos, adorador do sagrado, construtor de altares, profeta do cotidiano. Sim, aceite-me assim, pois tudo isto “faz parte do meu “show””, é a forma que tenho de te mostrar que sou humano, que sou o que sou.
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